“Morri e estou no paraíso.” Era tudo o que eu conseguia pensar
enquanto rasgava as estradas que cortam as florestas de New Hampshire,
ao norte dos Estados Unidos. Pela frente via com perfeição o volante
Nardi de madeira e o capô prateado. Eu era o maestro desta virtuosa
sinfonia mecânica executada por 12 cilindros magistralmente esculpidos
em Maranello, seis coletores de ar, 24 válvulas abertas e fechadas por
um eixo movido a corrente, discos de transmissão polidos à mão e um
escapamento que canta como um soprano.
A razão desta sobrecarga emocional é um raríssimo carro, o único
exemplar da Ferrari 250 GT Competizione Berlinetta, a de chassi 0425, de
1956. A primeira vez que vi este espetacular automóvel foi há quase meio
século. Como um jovem de 19 anos, minhas preocupações vitais na ocasião
eram arrumar um emprego, o sexo oposto e, obviamente, carros rápidos. Em
1960 um dos meus desejos foi atendido. Um amigo me disse que havia
importado um carro exótico da Europa e me convidou para ir à
sua casa, em Long Beach, na Califórnia. Ao chegar, ele estava secando
a coisa mais linda que eu jamais tinha visto na minha vida – não, não
era sua nova namorada. Eu fiquei petrifi cado ao ver aquela Ferrari
prateada, com quatro anos de vida, esculpida por Pininfarina para ser
exibida como protótipo no Salão de Automóveis de Genebra.
Suas curvas sinuosas e seu ar musculoso remetiam claramente aos
bólidos da clássica “Tour de France (TdF) Berlinetta”. Mas havia algo a
mais, ela emanava um ar mais formal e clássico, quase como se estivesse
vestida para um jantar de gala. Seus detalhes de desenho eram
impressionantes: faróis e lanternas embutidos na carroceria, a grande
grade e moldura cromada na frente do motor e a fila de ranhuras
traseiras acompanhando a elegante linha de queda do teto e que seria
copiada nos anos 60 pelos desenhistas do Ford Mustang.
OBRA DE MESTRE
O TdF Berlinetta recebeu este nome em função do dominante sucesso
desta Ferrari a partir de 1956. Sem dúvida este carro foi o GT de maior
sucesso da marca italiana, superando inclusive as GTOs que a sucederam.
Esse tiro certo não podia ter acontecido em melhor momento para
Maranello, pois a marca vinha perdendo a maioria das corridas para a
Mercedes-Benz desde 1954. A sorte da Ferrari mudou dois anos mais tarde,
ajudada por uma série de circunstâncias, entre elas, a decisão da
Mercedes em sair dos GPs e corridas de protótipos.
A Berlinetta nasceu nesse momento, quando Batista “Pinin” Farina foi
contratado pela Ferrari para desenhar um cupê leve que encarasse
competições da classe GT e ao mesmo tempo fosse confortável para uso de
rua. O maestro de Turim produziu sete protótipos diferentes, vários
derivados do seu musculoso cupê de competição 250 MM. Mas três se
destacaram ao servir de inspiração a toda uma geração de carros que
iriam definir a clássica TdF. Dois deles foram mostrados no Salão de
Paris de 1955, os de chassi 0393 e 0403, este último reconhecido pelos
pára-choques traseiros arredondados e pela coluna B que se estendia para
trás, um desenho que apareceria anos depois no Jaguar XJS Coupé.
Os dois protótipos apresentavam um fino anel cromado na grade
dianteira e quatro saídas de ventilação, uma de cada lado, atrás das
rodas dianteiras. Mas foi o 0393 que introduziu as 14 ranhuras laterais
atrás das janelas e a queda quase horizontal da traseira, que se
transformaria em marca registrada de quase todos os carros da TdF. Os
coletores de ar nas janelas e uma protuberância estranha na traseira não
fizeram sucesso.
DOLCE VITA
O desenho final foi apresentado no ano seguinte, no Salão de Genebra,
quando Pininfarina revelou o suntuoso chassi 0425 do 250 GT
Competizzione Berlinetta. Com rodas Borrani de 16 polegadas e saídas de
ar laterais com cinco dutos, todos os elementos dos futuros
participantes da TdF estavam lá. O incrível corpo de alumínio andava
sobre um chassi tipo 508 Europa 250 GT com a familiar estrutura
longitudinal e paralela feita por tubos ovais da Ferrari, conectada e
reforçada por tubos e braceletes em “X” e um anteparo frontal.
Como nas berlinetas de corrida 250 MM, a suspensão traseira empregava
um único feixe de molas semi-elípticas em cada lado, braços arrastados
acima e abaixo do eixo e amortecedores Houdaille. Na dianteira, os
braços em “A” superiores e inferiores e os amortecedores Houdaille foram
mantidos, mas as molas helicoidais substituíram os feixes de molas. A
distância entre eixos era de 2,60 metros e a distância das bitolas
dianteira e traseira eram de 1,35 metro e 1,34 metro, respectivamente.
O motor era um Colombo V12 SOHC Tipo 112 com 2.953 cm³ de cilindrado,
abastecido por três carburadores duplos Weber 36 DCZ3, produzindo mais
de 230 cavalos através de uma caixa de quatro marchas sincronizadas. Um
dos clientes prediletos da Ferrari, Enrico Wax, comprou a 0435 por US$
8.480 em abril de 1956, logo após o salão de Genebra. Começava aí uma
história épica.
Um ano mais tarde, Wax vendeu a 0435 para o príncipe Alessandro
Ruspoli, mais conhecido por dedicar seu tempo a la dolce vita. Ruspoli
(ou o próximo dono do carro, o piloto de Fórmula 1 Marchese Gerino
Gerini) removeu o anel cromado da grade dianteira. Gerini vendeu o carro
para a atriz Elena Giustti após sete meses e, no final de 1959, a 0425,
com o anel cromado de volta, foi parar nas mãos do meu amigo Jess
Haines. E, na sequência, nas minhas!
COMPREI. E AGORA?
Pilotei-a de volta para minha casa naquele mesmo dia. A potência
infernal do V12, os seus sons extraterrestres, interior vermelho com
detalhes brancos, painel estilo avião com nove mostradores, tudo isso só
para mim! Eu não podia acreditar. Nem o meu tio que concordou
relutantemente em me emprestar US$ 2 mil que eu deveria pagar ao Jess
mais o meu Corvair. Será este meu carro de uso diário? Eu nem tenho
garagem... Vou estacioná-lo na rua? Deixei esses pensamento de lado e
acelerei a máquina.
A verdade é que o carro me desgastou. Toda vez que o dirigia, ficava
preocupado. Toda vez que estacionava, ficava grudado na janela olhando
para ele. Sempre perdia tempo procurando vagas "seguras" e
quando voltava, circulava o carro inspecionando-o à procura de danos. A
atenção que ele chamava também me incomodava. A única vez que resolvi me
mostrar com o carro quase terminou em desastre. Estava em Hollywoood me
aproximando do teatro Pantage, onde acontecia a cerimônia de entrega do
Oscar, quando minha namorada me mostrou que Steve McQueen estava
acenando do seu Jaguar XKSS. Eu não acreditei que era ele e ele não
acreditou no meu carro.
Continuamos dirigindo e conversando por dois quarteirões, sem prestar
atenção nos pedestres, sinais e limites de velocidade. Mas um guarda
prestou atenção... Finalmente parei na frente do Pantage e todo
orgulhoso saí do carro e pisei no tapete vermelho, sem entender porquê
algumas pessoas estavam rindo mim. Ao olhar para traz percebi o motivo.
O guarda havia colocado uma multa no pára-brisas da minha Ferrari… Uma
semana depois, achei um pequeno risco no pára-choques. Fiquei louco!
Liguei para o Jess e devolvi a 0425. Ah, os erros que cometemos no
ímpeto da juventude...
O próximo passo na vida desta Ferrari aconteceu em 1961, quando
Chester Bolin comprou-a, e desapareceu com ela pelos próximos 25 anos.
Em 1986, os preços de Ferrari antigas haviam subido como um foguete e o
advogado Ed Niles, um fanático por esses carros, resolveu estudar a vida
da Berlinetta e encontrá-la. Conseguiu chegar até o seu misterioso
desaparecimento. Não teve dúvidas, contratou um investigador que acabou
por localizar Chester Bolin vivendo no meio de um deserto, num trailer,
perto da cidade fantasma Murietta, na Califórnia.
Como Bolin não tinha telefone,Niles e um amigo foram ao deserto à
procura do protótipo. Ao chegar, bem ao lado do trailer, lá estava a
inconfundível silhueta da Ferrari, coberta por uma lona. Ela não se
movia há anos. Os faróis estavam azuis devido à exposição ao sol do
deserto, a pintura vermelha da carroceria (sim, Bolin cometeu este
crime!) e o interior todo descascado,mas o carro estava lá. Bolin vendeu
o 0425 por 100 mil dólares, cerca de 20 vezes a mais do que havia pago.
Ferrari 250GT Competizione Berlinetta
O carro passou por um processo de restauração e em 1989 mudou de mãos
novamente, dessa vez o felizardo foi Al Mohr, que, sem hesitar, o
inscreveu no Concurso de Elegância de Pebble Beach, na Califórnia,
talvez o principal encontro de carros clássicos do mundo, e tirou
primeiro lugar na categoria Ferraris GT de coleção. Próxima parada:
Japão, pelas mãos de Hajime Tanaka ao custo de US$ 1 milhão. A volta
para os Estados Unidos do 0425 aconteceu pelas capazes mãos de Bruce
Lustman em 1998. Como grande conhecedor de carros antigos, Bruce
restaurou a Berlinetta às suas condições de fábrica em absolutamente
todos seus detalhes, incluindo algumas licenças poéticas como a
instalação de ignição eletrônica, novos discos, sistema de freios,
embreagem de cerâmica e amortecedores telescópicos.
O carro ficou ainda mais rápido e gostoso de pilotar e Lustman
demonstrou isso com brilhantismo nas corridas Tour de France 2.000,
Mille Miglia Storica e mais tarde na Colorado Grand. Finalmente em
dezembro de 2006 o atual proprietário, Lee Herrington, comprou o carro
de Lustman. Curiosamente, em 1998, Herrington havia mandado um agente
para o Japão para comprar o 0425, mas ele já estava dentro de um navio
a caminho das mãos de Lustman. Os valores envolvidos nas últimas
transações permanecem em segredo, mas sabe-se que o número de dígitos
foi de sete (antes da vírgula...).
Para Herrington, a 250 GT Competizione Berlinetta não é apenas uma
elegante obra-prima construída por um maestro, mas também um pedaço vivo
da história automotiva e da arte industrial. Seus planos são de
restaurar o carro à sua condição original de 1956 e mantê-lo exibido
como um marco para as próximas gerações.
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